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Continuando a entrevista cedida para a PressFut, depois de passar pela Bulgária, Bruno Pivetti comparou o futebol europeu com o futebol brasileiro em termos táticos-técnicos-físicos. O calendário brasileiro também foi discutido, falando inclusive, sobre como será no momento em que os campeonatos voltarem, depois da paralisação por conta do novo coronavírus. Uma boa oportunidade para entender um pouco mais sobre o papel da periodização tática.
Na segunda parte da entrevista com Bruno Pivetti, falamos sobre sua passagem pelo Ludogorets da Bulgária, que inclusive, já fizemos uma matéria sobre a hegemonia do clube no campeonato local (clique aqui para ler). Sua ida para a equipe de Razgrad foi um convite de Paulo Autuori, técnico que é referência na carreira de Pivetti.
Caso não tenha lido a primeira parte da entrevista, clique no link abaixo:
Em tempos de pandemia, finalizamos a entrevista perguntando como será ministrado os treinos a partir do momento em que o futebol voltar. Aproveitando para falar sobre o polêmico calendário do futebol brasileiro e a importância da periodização tática no planejamento dos treinos nesse momento.
Fique agora com o segundo capítulo da entrevista:
- Durante alguns anos, você trabalhou no Ludogorets da Bulgária. Mesmo não sendo um país referência no futebol europeu, de alguma forma foi importante para você adquirir mais experiencia no mercado internacional. Analisando sua passagem pelo clube búlgaro, o que você notou de diferente do Brasil em termos táticos-técnicos-físicos?
O Ludogorets é atualmente campeão búlgaro por oito vezes consecutivas, tendo o nono título já bem encaminhado para esta temporada. Se trata da maior estrutura do futebol búlgaro, não atoa, está frequentemente disputando as maiores competições europeias como a Champions League e a Europa League.
No momento do convite para me juntar ao corpo técnico da equipe, pesquisei sobre os números do clube nos últimos anos, e equivocadamente tive uma sensação de um cenário interno de baixa competitividade, mas que o desafio se justificava dada a oportunidade se vivenciar o mais elevado nível do futebol europeu nas competições continentais. Ao vivenciar o dia-a-dia do clube entendi que o orçamento da instituição estava diretamente relacionado a verba vinda da UEFA e que esta era proporcional ao desempenho da equipe em nível nacional, já que isto indicava a entrada para a disputa das eliminatórias para a Champions League.
Assim, para a garantia de orçamento do clube não restava outra alternativa senão ficar em primeiro todos os anos. Esta obrigatoriedade de título entendi que não derivava do cenário interno de competitividade baixa, mas sim do planejamento desportivo e financeiro do clube. Cada ano se torna mais difícil a conquista do título, fazendo com que o clube precise maximizar o seu desempenho, uma vez que todos se organizam para quebrar esta memorável sequência de êxitos.
Este contexto foi para mim de grande valia, pois a pressão de se trabalhar todos os dias tendo em vista somente o primeiro lugar como alternativa, te força a ter níveis máximos de atenção em relação as ideias de jogo, análises dos adversários e metodologia de treino. Deve-se criar uma atmosfera constante de máxima competitividade, já que a margem de erro permitida é extremamente baixa para uma equipe em que só importa o título.
E depois, durante a disputa das eliminatórias da Champions League e da Europa League, o nível competitivo era ao mais alto nível. Conseguimos na altura a classificação para a fase de grupos da Europa League e isto nos deu a oportunidade de realizar jogos de máximas exigências. Tudo isto contribuiu para vivenciar na prática a realidade competitiva do futebol europeu. Vivenciei a escola alemã, enfrentando o Bayer Leverkusen, a suíça, nos jogos contra o FC Zürich e também um pouco da metodologia espanhola, nos jogos contra o AEK Larnaca, que apesar de ser do Chipre, contava com um treinador espanhol.
Me chamou a atenção a intensidade demonstrada por estas equipes e a capacidade de variação tática que apresentam durante as partidas. Mantêm os mesmos princípios de jogo, porém adotam diferentes sistemas ao longo da partida e em diferentes jogos.
Deu para perceber no geral, que a metodologia de treino que utilizo, está em grande destaque no cenário europeu e é hoje fonte de estudo e aplicação em muitos países. Em relação aos meus conceitos de jogo, estes estão também alinhados ao mais elevado nível europeu, e se mostrou eficiente nos diferentes jogos que disputamos. Além disso, consegui vivenciar profissionais de ponta de muitas regiões europeias no Ludogorets, e por uma boa sintonia de ideias, conseguimos constituir um grande processo de trabalho.
Isso me deu a real noção não só do cenário europeu, mas também do nível em que me encontro perante as ideias praticadas neste grande centro do futebol.
- Sua chegada ao Ludogorets foi um convite de Paulo Autuori, então treinador do time búlgaro. Agora, com ele de volta ao Brasil como técnico, você voltou a ser especulado para trabalhar com ele no Botafogo. Qual a contribuição do Autuori na sua carreira?
Considero o Professor Paulo Autuori uma das grandes referências da minha carreira tanto em termos práticos, como também teóricos. Em acordo com o que vivenciei no futebol, se trata de um profissional que demonstra uma expertise nos três fatores que elenquei anteriormente que definem para mim a qualidade de um treinador. É um grande líder e gestor de pessoas, otimizando aquilo que cada um tem de melhor a serviço do grupo. Suas ideias de jogo estão em linha com aquilo que observamos de mais atual no futebol mundial. E, em relação a metodologia de treino, possui um vasto conhecimento teórico, cuja aplicabilidade prática se mostra extremamente eficiente para levar as suas ideias a campo.
É atualmente um dos grandes treinadores do mundo do futebol, tendo uma vivência rica em diversos contextos. Alcançou grandes níveis de performance em diversos cenários futebolísticos, o que define para mim uma grande capacidade de adaptação inerente aos melhores profissionais.
E o mais importante, são as suas virtudes enquanto pessoa, o que é para mim um grande agente facilitador de todas as qualidades relacionadas aos grandes líderes positivos. O defino como um humanista, já que sempre tenta enxergar a pessoa por trás do profissional.
Apesar de todas as conquistas e sucesso em um largo espaço de tempo, se mantém humilde e aberto a incorporação de novos conhecimentos. Para mim, o potencial de aprendizagem de todo ser humano é proporcionalmente relacionado ao seu nível de humildade. Desta forma, quanto mais humilde, maior a chance de se aumentar o conhecimento, justamente pela não arrogância em se estagnar perante os sucessos e resultados obtidos.
Tenho a certeza que o Professor Paulo Autuori se configura na expressão máxima de um vasto conhecimento obtido, com a humildade de se possibilitar ampliar ainda mais seu universo do saber. Com base em todas estas virtudes, me inspiro a evoluir cada vez mais em todos estes níveis para que um dia, sem perder a visão de futuro, possa olhar para trás e ter o mesmo orgulho que o Professor Paulo Autuori deve sentir ao rememorar a sua vitoriosa carreira.
- Mesmo após a saída de Paulo Autuori do Ludogorets, você continuou no clube e se tornou o construtor de uma metodologia que mantém até hoje uma hegemonia do time no país. Olhando para o seu trabalho, como você calcula a importância dele para o Ludogorets e para o futebol da Bulgária?
Além das funções de assistente técnico principal no Ludogorets, fui convidado pelo dono do clube no momento da saída do Professor Autuori, a também exercer a Coordenação Metodológica de todas as categorias da formação do clube. O objetivo era muito semelhante as funções que desempenho atualmente no EC Vitória. Por sugestão do Paulo, aceitei as condições que o clube estava me proporcionando e resolvi pela minha permanência.
Acredito que tenha ficado um legado importante para o clube, uma vez que promovi reuniões periódicas com todas as comissões técnicas para discutirmos os mais variados assuntos relacionados ao futebol. Trouxe as comissões a acompanharem na prática a operacionalização do meu treino no profissional, e o feedback foi muito positivo. Me lembro de alguns treinadores comentarem com gratidão que nunca nenhuma comissão voltada ao Profissional tinha dado tamanha importância aos profissionais da formação.
E cada vez que recebo uma ligação ou mensagem destes treinadores a fim de conversarmos sobre futebol, para que estes possam pedir algum conselho, ou até mesmo esclarecer alguma eventual dúvida, me sinto como ter feito parte de algo importante à estes profissionais.
Conseguimos um bom nível de avanço na implementação do Modelo de Jogo, bem como as ideias metodológicas de treino. Infelizmente, por uma opção de outros caminhos por parte da direção do clube, este projeto completou uma temporada, porém não teve sequência na seguinte.
Porém, tenho indicadores que o legado foi deixado e considero este, mais um projeto bem-sucedido de minha carreira. Não só por este trabalho geral no clube, mas também pela satisfação que os jogadores profissionais demonstraram pela evolução que obtivemos durante este período em termos do Modelo de Jogo e do processo de treino. Creio também que pela hegemonia do Ludogorets em território Búlgaro, sendo este um clube de referência, algum legado deve também ter ficado para o país.
- Com alguns trabalhos em categorias de base e atualmente como coordenador de formação, você pôde vivenciar diferentes experiencias. Se discute muito na base sobre ganhar títulos ou dar preferência para a formação de novos talentos. Qual sua preferência nessa questão, e como você balanceia isso?
Creio que estes dois fatores nas Categorias de Formação não são excludentes, mas sim complementares entre si. Digo isto, pois concebo a perseguição pela vitória e obtenção de resultados, como parte integrante do processo de formação.
Deve-se ter um Modelo de Jogo de qualidade que permita oferecer requisitos táticos-técnicos aos jogadores que por sua vivência aumentem a chance de um dia estarem integrados ao Departamento Profissional. Além disso, a metodologia utilizada deve maximizar uma formação completa dos jogadores em longo prazo.
Tais processos devem ser institucionalizados pelo clube e os resultados das Categorias devem ser um meio e não um fim do processo de formação. Uma vez que os profissionais tiveram suas ações em acordo com o processo do clube, porém por algum motivo não obtiveram os melhores resultados, deve-se sim refletir acerca do processo, realizar os ajustes necessários, mas oferecer uma estabilidade de trabalho.
Isto porque, cada vez que se troca um profissional, existe um tempo de latência até a completa adaptação e aprendizagem daquilo que é o processo do clube. Com isso, perde-se tempo no investimento das melhores práticas orientadas ao desenvolvimento dos jogadores em todas as esferas de rendimento.
Sempre lembro que os resultados no processo de formação são em duas vias, uma óbvia, acerca dos resultados desportivos obtidos, e outra sobre o quanto as Categorias de Formação conseguem prover o profissional anualmente com jogadores de qualidade. Reforçando que estas vias podem ser complementares, e não excludentes entre si, desde que se tenha um processo institucionalizado para despersonalizar os resultados obtidos.
- Como será o trabalho de periodização tática a partir do momento que futebol voltar, levando em consideração que, provavelmente, o tempo de descanso entre os jogos será menor, visando uma adequação ao calendário de futebol.
Como na Periodização Tática o investimento se dá pela implementação e/ou aperfeiçoamento do Modelo de Jogo desde o primeiro dia de treinamento, a mesma se torna uma ferramenta fundamental para os cenários que estão por vir. Com o calendário condensado em virtude do menor tempo para a realização dos jogos, o investimento maciço em recuperação se justificará para manter os jogadores em níveis ótimos de competição. Dentro desta metodologia, consegue-se bem desenvolver os princípios de jogo, sem necessariamente prejudicar o processo de recuperação dos jogadores.
Por isso, é importante ter um Modelo de Jogo bem definido e fazer com que os jogadores o reincorporem de maneira rápida, porém progressiva. Vale lembrar, que os mesmos virão de 2-3 meses de inatividade, tendo esta acontecido após 2-3 meses do início do calendário. Uma situação completamente atípica que exigirá um investimento preciso do tempo. Esta otimização do tempo pode ser bem gerida quando incorporamos em nosso processo aqueles que são os princípios da Periodização Tática.
- Falando em calendário, como é o trabalho de periodização tática, baseado no calendário brasileiro, visto que as equipes da Série A e Série B, fazem mais de 50 jogos no ano?
Novamente em alusão a pergunta anterior, a Periodização Tática é uma Metodologia que bem otimiza o tempo investido no processo de aquisição de uma determinada forma de se jogar. Assim, mesmo com a enorme quantidade de jogos no calendário brasileiro para as equipes envolvidas nos maiores cenários competitivos, ao operacionalizarmos o nosso processo a partir destes princípios metodológicos, conseguimos incorporar uma determinada ideia de jogo em forma de hábitos estabelecidos nos jogadores.
Além disso, por meio da constituição do ciclo de treino na Periodização Tática, chamado Morfociclo Padrão, conseguimos uma organização da semana de maneira que seja respeitado ao máximo o binômio desempenho/recuperação. Isto garante com que os jogadores cheguem aos jogos em seu nível ótimo de rendimento.
Dentro deste mesmo ciclo, por meio das propensões de aparecimento dos princípios de jogo nos diferentes exercícios, os jogadores têm a oportunidade de vivenciá-los na prática, estabelecendo-se assim, uma adaptação não só nas tomadas de decisão, como também na vertente física/fisiológica que demanda a execução dos princípios que rementem a ideia do Modelo de Jogo.
Como o processo evolui e retrocede em função daquilo que acontece no jogo, temos a oportunidade de um aperfeiçoamento constante do Modelo de Jogo que defendemos. Já que o ciclo de treino compreende sempre os dias entre um jogo e outro.
Perante estes fatores, considero uma ferramenta indispensável ao atual futebol brasileiro, pois nos ajuda a lidar com um dos calendários mais densos do futebol mundial.
- Para finalizar, como você enxerga a ascensão precoce de jogadores advindos da base para o profissional, sem formação físico-técnica plena, para suprir carências no elenco, provenientes de uma possível falta de dinheiro, devido à má gestão de alguns clubes? E o quão prejudicial isso é para os clubes que mantém essa prática?
No cenário ideal de formação deve existir um Modelo de Jogo institucional do clube, que garanta obviamente a autonomia do processo de tomada de decisão do treinador. A metodologia de treino utilizada para a implementação destas ideias de jogo, condizentes com os aspectos tradicionais do clube, também são comuns a todas as categorias, respeitando-se sempre a particularidade de cada contexto.
A partir daí, o fluxo e a transição de jogadores entre todas as Categorias se tornam um processo mais facilitado, menos custoso em relação a adaptação dos jogadores a um novo cenário. O salto para a Categoria Profissional é talvez o mais difícil, até pelo ponto de vista estatístico, já que esta Categoria, dentre outras coisas, tem a possibilidade de buscar jogadores no mercado.
Agora, se a Categoria Profissional for encarada como mais uma parte do processo de formação, ou seja, que esta siga os pressupostos institucionais do clube, a eficiência no aproveitamento de jogadores oriundos da base aumenta substancialmente. Outro fator que contribui bastante ao aproveitamento dos talentos do clube, é a presença de Categorias SUB 23 ou uma Equipe B.
Sabemos que o tempo de adaptação aos jogadores em nível profissional variam de indivíduo para indivíduo. Nem sempre o jogador que sai da Categoria SUB 20 está pronto para oferecer retorno técnico imediato em um contexto profissional. Assim, com a presença de mais um estágio de formação antes da Categoria Profissional, pode-se otimizar o aproveitamento dos jogadores e dar-lhes o devido tempo a se adaptarem.
Se os clubes se atentarem a estes aspectos básicos de governança e gestão, a incidência de um processo forçado de promoção de jogadores a equipe profissional diminui substancialmente.
Uma coisa é oferecer uma oportunidade, que significa que o indivíduo está devidamente preparado para aproveitar uma determinada situação, outra, porém, é realizar uma exposição do jogador, que remete a oferecer uma chance a quem não tem as devidas condições de aproveitá-la.
Caso o clube não siga um modelo semelhante àquele aqui reproduzido, o êxito também pode ser conseguido, mas com uma eficiência menor. E na manifestação de um eventual prejuízo, este pode ser em diversas frentes.
Com a exposição de um determinado jogador que não esteja devidamente preparado para oferecer o retorno técnico esperado na Categoria Profissional, leva-se a um desgaste da imagem do mesmo ao cenário externo que envolve o clube, como as mídias e os torcedores, por exemplo. Claro que o clube deve seguir suas diretrizes institucionais e não balizar suas decisões sobre aquilo que remete os cenários externos.
Porém, a partir deste momento, caso não se tenha um processo sólido de formação que blinde o jogador, se torna dificultado o aproveitamento do mesmo. Fazendo com que o prejuízo seja além do retorno técnico esperado não atendido, a perda dos anos de investimento em sua formação. O clube deixa de ganhar em termos técnicos no imediato, perde uma possibilidade de negócio futuro com uma possível venda, e também tem colocado em dúvida todo o investimento em relação as Categorias de Formação.
Por este motivo é tão importante o estabelecimento de processos institucionais sólidos de formação do clube. Permitindo com que o mesmo tenha mais condições de se planejar no curto, médio e longo prazo em todos os níveis que envolvem as boas práticas de gestão.
Entrevista por Daniel Dutra e Thiago Alves