- Bodø/Glimt: o raio do Ártico que chocou o mundo com seu pioneirismo - 16 de janeiro de 2021
Clube centenário pouco tradicional do norte da Noruega viveu um conto de fadas: de azarão e vítima de preconceito, até um título inédito e histórico. Os bastidores, os números assombrosos, o assédio das grandes ligas do velho continente e o futuro do Bodø/Glimt.
Imagine só: uma cidade a mais de 1200 quilômetros de Oslo, a capital, com uma população de apenas 52000 habitantes. Nela, um clube de futebol, dono de um estádio para 5635 pagantes. Desse modo, é compreensível imaginar que se trata de um time amador, membro de alguma sunday league ou de uma divisão da base da pirâmide nacional. Entretanto, essas são informações do Bodø/Glimt, o atual campeão da Eliteserien, a elite da Noruega.
Além de ter sido o primeiro troféu da liga em seus mais de 104 anos de história, o clube empilhou recordes impressionantes na temporada. Não apenas isso: de uma só vez, a equipe teve a maior quantidade de vitórias (26 em 30), a maior margem de pontos para o segundo colocado (19), o ataque com mais gols (103) e a campanha com mais pontos (81). Afinal, como esse feito extraordinário foi possível?
Um breve perfil
Fundado em 19 de setembro de 1916 na cidade de Bodø, o Fotballklubben Bodø/Glimt não nasceu ou se tornou um clube financeiramente poderoso. Em função disso, nunca montou elencos estrelados. Pelo contrário, sempre organizou seu plantel com atletas da base e transferências locais.
Em sequência, é importante reforçar um aspecto geográfico peculiar: o clube se situa no Círculo Polar Ártico. Por consequência, ele fica extremamente isolado dos demais times da Eliteserien. Só para ter uma dimensão, o adversário mais próximo, o Rosenborg, fica a mais de 700 quilômetros de distância. Portanto, transporte é um dos principais gastos para o Glimt.
O preconceito com o norte
Apesar de ter se destacado localmente, o time só jogou a primeira divisão em 1977. O motivo? A federação norueguesa não permitiu a entrada de clubes do norte até 1971, sob o argumento de serem pouco competitivos. E não para por aí: enquanto os primeiros da segunda divisão do sul tinham vaga direta na elite, os do norte não. Em contrapartida, estes precisavam jogar um play-off com os segundos colocados das regiões sul. No caso dessa regra, a abolição foi ainda mais tardia: 1979. Um exemplo de impacto negativo foi em 1975, quando o Bodø/Glimt conquistou seu primeiro grande título, a copa da Noruega, e por ter sido vencedor, tinha direito à uma vaga na elite. Entretanto, a regra novamente entrou em ação, forçando um play-off.
Não só no esporte, o preconceito com o norte existiu de várias formas. Além de placas de aluguéis na capital Oslo com “sem pessoas do norte” escrito, a população do norte era associada à ruralidade e atraso, pescadores e fazendeiros. Inegavelmente, a situação atual é milhares de vezes melhor, mas não anula o impacto causado por décadas para times de lá.
Diferenciais do Glimt
Quando a pandemia chegou, muitos clubes tiveram que mudar sua postura. Na Noruega não foi diferente: contratos suspensos e o temor de uma forte crise. Contudo, o Glimt foi na contramão de seus compatriotas e manteve a estabilidade dos contratos. A diretoria, presidida por Inge Henning Andersen, decidiu por não demitir nenhum funcionário, tampouco alterar os salários dos jogadores. Inclusive, eles mantiveram uma rotina de treinos individuais, visando não perder o ritmo para a temporada.
Outro fator externo ao que era mostrado em campo foi Bjorn Mannsverk, ex-piloto da força aérea norueguesa. Como coach de saúde mental, atuou como peça-chave na manutenção do psicológico dos atletas. Sempre antes dos treinos, ele promovia uma meditação, buscando tornar o ambiente mais leve. Para o meia Ulrik Saltnes, foi além: o prata da casa pensava em aposentadoria aos 28 anos, tendo em vista a presença de complicações na saúde:
Ele sentia uma pressão no estômago e tinha síndromes relacionadas ao estresse. Ele podia se dar bem no treinamento, mas não nos jogos. Então, eles começaram a falar sobre isso… e finalmente encontraram uma maneira de sair disso.
Inge Henning Andersen, ao falar sobre o trabalho de Mannsverk com Saltnes.
Dentro de campo, Kjetil Knutsen promoveu um carrossel. Técnico adjunto do time em 2017 e principal em 2018, conhece a maior parte do seu plantel. Em virtude disso, fez uma aposta: jogar um futebol extremamente ofensivo em um 4-3-3. Mesmo sendo uma forma padrão de atacar, a tática não parava aí: se estiver com a posse, todas as linhas avançam. Em sequência, o ataque se espalha para todos os lados, o que obriga as defesas adversárias a fazer o mesmo e gerar espaços. Estes, por sua vez, são aproveitados por quem infiltra. Resultado: ao menos três jogadores surgem como opção para chutar a gol.
A façanha em números
Embora tenha sido o primeiro título, não houve timidez na conquista. Na verdade, nunca um clube venceu com tantas sobras como agora. Haja vista que, dos cinco jogadores com mais participações em gols na liga, quatro eram do Bodø/Glimt. Desses quatro, dois tiveram mais de 20, um teve mais de 30, e um ultrapassou as 40. Kasper Junker, autor de 27 tentos, ficou com bom ranking na chuteira de ouro, e só não foi além por conta do peso menor de sua liga. Ademais, vale lembrar que o máximo de partidas é 30. Logo, fica evidente o quão bem dividido é o poder de fogo, autor de 103 tentos, ou seja, uma média de 3,4/p.
Segundo, é interessante frisar a chocante escassez de tropeços. O raio, tradução para Glimt, perdeu apenas dois jogos ao longo de um ano. Aliás, uma das derrotas foi na Europa League, diante do Milan de Pioli (3-2). Já a outra ocorreu na Eliteserien, após sofrer um 4-2 diante do Molde, fora de casa, com time misto. Então, no geral, foram 33 jogos, 28 vitórias, 3 empates e 2 derrotas.
Terceiro, a frequência de redes balançadas impressiona. Desses 33 jogos, o Glimt fez pelo menos 1 em todos, não conseguiu 2 ou mais em apenas um, e fez acima ou igual a 5 em 8. Como se não fosse o suficiente, todas as peças do quarteto de ataque fizeram dois dígitos em gols e assistências.
Na defesa, a equipe, de forma surpreendente, não passou dificuldades. Apesar de seu esquema selvagem, só concedeu 3 gols ou mais em duas únicas ocasiões. Ainda, foram 7 clean sheets e um total de 36 tentos contra, ou seja, uma média de um pouco mais de 1/p. Em função disso, o Bodø/Glimt terminou 2020 como a melhor defesa da Noruega.
O assédio das grandes ligas
Ao tempo em que o Bodø/Glimt levantava a taça e festejava seu pioneirismo entre os times do norte, os olhares de fora dilatavam pelos líderes da campanha. Antes mesmo do término da competição, o ponta-esquerda Jens Petter Hauge, formado em Bodø, se transferiu para o Milan, após atuação de gala no confronto com os rossoneri. Agora, foi a vez de Philip Zinckernagel, o ponta-direita, de saída para o Watford. Ademais, Kasper Junker já recebeu sondagem do Celtic. Mas afinal, será esse o desmonte de um projeto promissor?
Antes de mais nada, é preciso analisar a temporada de 2019. Prenúncio da glória em 2020, o raio terminou em segundo lugar, 14 pontos atrás do Molde. Entre os 11 titulares médios da campanha, 5 saíram do clube, sendo um deles o com a maior participação: Hakon Evjen (AZ Alkmaar). Desse modo, a ausência de impacto negativo fica visível, o que aponta para uma boa e segura gestão da instituição. Até porque, a mesma reconhece a condição do time e já trabalha sempre supondo o cenário onde perderá suas peças mais brilhantes.
Official Statement: Jens Petter Hauge ➡️ https://t.co/gb3HSkfkXU
Comunicato Ufficiale: Jens Petter Hauge ➡️ https://t.co/tmyKxGJuSM#ReadyToUnleash #SempreMilan pic.twitter.com/kOD4zL67wr
— AC Milan (@acmilan) October 1, 2020
O futuro do “Leicester Norueguês”
Depois de atravessar todas as barreiras imaginadas para um clube de seu porte, o Bodø/Glimt tenta se firmar como referência nacional. Sua história é riquíssima, seus feitos são admiráveis. Para um clube que ficou sete dos últimos quinze anos na segunda divisão, só se firmando na primeira há 4 anos, e agora jogará a Liga dos Campeões, é um achado inimaginável. Mesmo aparentando ser um conto de fadas, não houve acaso por trás de toda essa escalada. Na verdade, é um modelo perfeito sobre como se planejar e organizar diante de uma crise, seja ela global ou interna. Metas? Comparações? Não. A única concorrência a ser considerada é a de si próprio.
Eles decidiram deixar tudo para trás e parar de almejar um resultado como um lugar entre os oito primeiros, entre os 10 ou até mesmo uma posição top três. Deixe assim, concentre-se no desenvolvimento dos jogadores. Basicamente, venha como a melhor versão que você possa ser – e vá como uma pessoa melhor amanhã.
Inge Henning Andersen